Primeira Metade do Século XIX
A minha ideia original era fazer apenas um artigo sobre a história da cerveja no século XIX. Mas surgiu tanta informação que me pareceu coerente dividir em duas partes. Além disso, em termos econômicos as duas metades do século XIX, para o Brasil, foram bem distintas, e isso obviamente impactou a incipiente indústria da cerveja brasileira.
Na primeira metade do século XIX o Brasil estava muito voltado para a economia de exportação de insumos agrícolas, principalmente café e açúcar, e não tinha ainda se preocupado em desenvolver a incipiente industria nacional. Com isso, os primeiros pioneiros nacionais em fabricação de cerveja passaram muita dificuldade ao competir com o produto externo. Além disso, o principal parceiro comercial do período - a Inglaterra - não tinha nenhum interesse no desenvolvimento de uma indústria nacional. E assim, tanto a a importação de insumos, quanto a de maquinário era muito dificultada.
No início do império não existia nenhuma forma de protecionismo para a indústria nacional. A tarifa de importação era de 15%. Só em 1844 houve a implementação das tarifas Alves Branco que aumentava a tarifa para 30%, quando não havia similar nacional, e para 60%, quando havia similar.
Por tudo isso, as cervejarias do período, com exceção de uma, tiveram vida muito curta, de apenas alguns anos. A única que sobreviveu mais tempo, ao menos uns quarenta anos, foi a cervejaria da Rua Matacavallos 27 (atual Riachuelo), que teve a primeira menção em jornais em 1834 e a última em 1871.
Spruce Beer
Diario Mercantil de 30 de Junho de 1825 |
As primeiras menções a cerveja em jornais nacionais eram referentes à importação de cerveja inglesa em barril. Mas em 1825, no Diário Mercantil do Rio de Janeiro aparece um anúncio de essência de espruce (ou abesto) para se fazer cerveja em casa. Cerveja caseira temperada com espruce era uma tradição comum nos Estados Unidos na época colonial, bem como no Canadá. (Mais informações aqui)
Uma receita americana da época colonial consistia em se ferver 50 gramas de lúpulo em 4 litros de água durante meia hora. Então adiciona-se mais 60 litros de água, oito litros de melaço e 100 gramas de essência de espruce e coloca-se a mistura em um barril. Adiciona-se fermento cervejeiro e deixa-se fermentar por uma semana.
Cerveja de Banana
Entre os anos 1824 e 1834 o viajante alemão Carl Seider esteve no Brasil e afirmou que encontrou imigrantes alemães no Rio Grande do Sul com conhecimento para fabricar cerveja, mas não relatou nenhuma produção de fato de cerveja pelos imigrantes. Mas ele relatou que os escravos faziam uma cerveja com banana muito espumante. Fazer cerveja com banana é um costume comum na África e na Ásia e provavelmente chegou ao Brasil com os escravos africanos, como tantas outras culturas.
No livro "Sacred and Herbal Healing Beers" apresenta uma receita de cerveja de banana da tribo Wachagga, chamada pombe, cuja receita eu transcrevo abaixo (mas confesso que ainda não tentei):
- 2 litros de bananas bem maduras (na receita original eram "2 quarts" uma unidade de volume que é equivalente ao litro)
- fermento
- 5 litros de água
- 3 litros de farinha de milhete ou de cevada maltada
No sexto dia, misture a farinha com água suficiente para fazer uma massa. Filtre o líquido do "suco da banana" e misture com esta massa. Deixe descansar coberto. Beba/coma! É considerado uma bebida/alimento é tudo é aproveitado.
Primeira Fábrica de Cerveja
Seção de Vendas do Correio Mercantil de 15 de Novembro de 1831 |
Interessante notar que esta fábrica de cerveja vendia também destilados, bagas de zimbros e baunilha. Possivelmente as bagas de zimbros também eram utilizadas na cerveja ou nos destilados.
Além desse anúncio, outros aparecem em jornais do período, inclusive ressaltando que a cerveja era feita com lúpulos chegados de Hamburgo, e que estava disponível em garrafas e botijas.
O proprietário da fábrica se chamava Pedro Vidal e muito pouco pude descobrir a respeito dele. Aparentemente a empresa teve vida curta pois a última menção a esta fábrica em jornais se deu em 1833.
Outras Fábricas do Período
Além da fábrica de cerveja da Rua d'Ajuda, do sr. Pedro Vidal, existiram outras empreitadas no país neste período. Mas foram poucas e, em geral, de curta duração.
A tabela abaixo resume a listagem de cervejarias que foram levantadas pesquisando-se no arquivo digital de jornais da Biblioteca Nacional e no blog Cervisiafilia.
Auxiliador da Industria Nacional 1849 |
Interessante notar que a cervejaria de Niterói fazia cerveja a partir de arroz e que a fábrica do Carlos Keller era também uma fábrica de refino de açúcar, o que nos leva a supor que se utilizava rapadura, melaço, açúcar mascavo ou outra forma de açúcar na fabricação da cerveja. E isso não é de se estranhar pois os ingleses, nesta época, utilizavam muito o açúcar em suas cervejas, inclusive considerando-o como uma forma de malte e não como adjunto.
Cerveja Marca Barbante
Ao se estudar a história das cervejas nacionais no século XIX, muitas referências se vê ao termo Cerveja Marca Barbante. Conforme pode-se ler do trecho abaixo retirado da wikipedia:
"Cerveja Marca Barbante" foi a denominação genérica dada às primeiras cervejas brasileiras que, com sua fabricação rudimentar, tinham um grau tão alto de fermentação que, mesmo depois de engarrafadas, produziam uma enorme quantidade de gás carbônico, criando grande pressão. A rolha era, então, amarrada com barbante para impedir que saltasse da garrafa. Refrescante e de baixo teor alcoólico, a cerveja foi aos poucos conquistando popularidade no Brasil. Era também, conhecida como "cerveja de cordão" na região Nordeste
No entanto, uma busca nos arquivos da Biblioteca Nacional em jornais do século XIX, pelo termo "Cerveja Barbante" ou mesmo "Cerveja Marca Barbante" apenas retorna resultados no Diário de Pernambuco e outros jornais do Nordeste.
Auxiliador da Indústria Nacional -1846 |
Por outro lado, supõe-se que em todo o país havia problema com a quebra de garrafas devido a continuação da fermentação, pois apareceu, em uma publicação do "Auxiliador da Indústria Nacional" em 1846, uma sugestão de "pasteurização antes de Pasteur" para resolver o problema da explosão de garrafas. (A Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional foi uma
sociedade civil de direito privado fundada em 1831 no Brasil com o objetivo de
fomentar a indústria brasileira.)
Estilos de Cerveja
Que tipo de cerveja nossos conterrâneos do século XIX bebiam? Acima foram citados dois estilos - um tanto radicais - mas que eram restritos a determinadas comunidades, a "Spruce Beer" e a Cerveja de Banana. Além dessas duas, se bebia de maneira mais generalizada a cerveja inglesa, visto que a Inglaterra era o principal parceiro comercial do Brasil, e a cerveja nacional produzida por alguma das poucas fábricas nacionais. E é bem fácil concluir que a cerveja nacional buscava imitar a cerveja europeia que aqui chegava. Como quase tudo no Brasil Imperial, era de se esperar que as cervejarias também imitassem o que era feito na Europa.
Dentre a variedade de cerveja inglesa quais estilos seriam consumidos aqui? Os jornais da época não eram muito detalhistas e descreviam as cervejas apenas em escura e clara. O Ron Pattison em seu "The Home Brewer's Guide To Vintage Beer" nos dá uma boa noção quanto às receitas das cervejas produzidas na Inglaterra de antigamente e pode-se listar que nesta primeira metade do século XIX os seguintes estilos eram produzidos:
Cabe salientar que estes estilos estavam em processo de evolução e destoam significativamente do que nós entendemos hoje, por e exemplo, a Porter do início do século XIX era muito mais clara que o que nós entendemos hoje por Porter .
Acredito que quando os jornais da época se referiam a cerveja escura seria a Porter - que era mais difundido e mais barato que a Stout. E quanto à cerveja clara minha aposta é que o estilo mais consumido aqui seria a Mild Ale - também por ser um estilo mais barato. As IPA's e Pale Ale eram restritas mais à exportação para Índia e para o consumo próprio, e por serem mais caras - e mais robustas - acredito que não foram enviadas para estas terras brazucas.
- Porter
- Stout
- IPA
- Pale Ale / Bitter
- Mild Ale
- Stock Ale / Burton Ale
Cabe salientar que estes estilos estavam em processo de evolução e destoam significativamente do que nós entendemos hoje, por e exemplo, a Porter do início do século XIX era muito mais clara que o que nós entendemos hoje por Porter .
Acredito que quando os jornais da época se referiam a cerveja escura seria a Porter - que era mais difundido e mais barato que a Stout. E quanto à cerveja clara minha aposta é que o estilo mais consumido aqui seria a Mild Ale - também por ser um estilo mais barato. As IPA's e Pale Ale eram restritas mais à exportação para Índia e para o consumo próprio, e por serem mais caras - e mais robustas - acredito que não foram enviadas para estas terras brazucas.
Ron Pattison nos dá uma boa noção quanto às receitas das cervejas produzidas na Inglaterra de antigamente. Como disse acima, acredito que dois estilos que deviam vir para o Brasil da época seriam a Porter e a Mild Ale, assim escolhi uma receita de uma Porter de 1821, da Barcley Perkins que era a maior cervejaria do mundo à época.
Fábrica da Barcley Perkins em 1820 |
Coloquei a receita conforme descrita no "The Home Brewer's Guide To Vintage Beer" no Beersmith e analisei o resultado. Aí eu pensei como um cervejeiro do Rio de Janeiro da época faria uma equivalente com insumos nacionais. Obviamente que era necessário se adaptar com o que havia à disposição, e como já vimos o arroz e os açúcares de cana eram insumos acessíveis para as cervejarias nacionais. Além disso, é de se supor que a utilização de lúpulo fosse menor em cervejas nacionais por restrições de disponibilidade e preço deste.
1821 - Barclay Perkins Brazuca
Receita para 5 galões (19 litros)
- 5,2 kg - Malte Pale Ale
- 0,45 kg - Melaço
- 0,2 kg - Açúcar Mascavo
- 50 g - Lúpulo Goldings 90min
- 30 g - Lúpulo Goldings 30min
- 1 pacote levedura English Ale da Bio4 - SY031
Ainda não testei essa receita, mas pretendo fazer esta receita e a original da Barcley Perkins de 1821 e comparar as duas.
Fontes
- Celso Furtado - "Formação Econômica do Brasil"
- Ron Pattison - "The Home Brewer's Guide To Vintage Beer"
- Carl Seider - "10 anos no Brasil"
- Stephen Buhner - "Sacred and Herbal Healing Beers"
- Blog Cervisiafilia
- Arquivos digitais da Biblioteca Nacional
- Sergio Santos - "Os Primórdios da Cerveja no Brasil"
- Eric Hobsbawm - "A Era das Revoluções - 1789 - 1848"
- http://www.spruceontap.com/
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