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Caçando Leveduras Selvagens - II


Brassagem de uma Amber Ale
No post anterior eu contei como fiz para obter três culturas de leveduras selvagens com caráter promissor no sentido de fermentar uma cerveja. O próximo passo seria isolar as leveduras nestas amostras conforme explicado nestes dois sites gringos:aqui e aqui. Mas, como me faltam os meios (microscópio, placas de petri, etc...), resolvi me adaptar com o método mais rústico, ou seja, sem identificar nem isolar, utilizando toda a cultura de microrganismos não identificados.


Assim sendo, parti das três amostras e preparei um starter simples de 500 ml com cada uma, utilizando extrato de malte e buscando uma OG de 1.040. Preparei também um starter a partir de uma ampola de Brettanomyces Bruxellensis Trois da Bio4 e outro a partir da levedura recuperada da cerveja Hino a Ninkasi Original (aquela que obtive a levedura a partir da fermentação natural de tâmaras).

Optei por fazer uma American Amber Ale, bem lupulada (Centennial e Saphir) e com caráter caramelo no sabor do malte. Não foi a melhor escolha no sentido de destacar as características das leveduras selvagens, deveria ter optado por um estilo com um perfil mais neutro. Mas... eu estava a fim de beber uma Amber Ale.





Então brassei 30 litros com uma OG 1.048(medido) - e IBU 28(estimado), e a dividi em SEIS lotes para fermentar aproximadamente um galão em cada. O site Milk The Funk recomenda um valor máximo de um galão para o lote de cerveja fermentada com leveduras selvagens utilizando-se essa técnica.

Assim, recapitulando, são seis cervejas fermentadas com as seguintes leveduras/culturas:
  1. Saccharomyces Cerevisae - cultura de leveduras pura obtida a partir de um saquinho de US-05 (cerveja base) 
  2. Brettanomyces Bruxellensis Trois - cultura de leveduras pura obtida a partir de uma ampola da SY-123 da Bio4
  3. Tamaromyces Ninkasis Originallus - cultura de leveduras selvagens obtida a partir da fermentação natural de tâmaras, conforme descrito aqui.
  4. Quintallomyces Cerevisae - cultura de leveduras selvagens obtidas a partir da fermentação espontânea de um mosto deixado de uma noite para outra em meu quintal, conforme descrito aqui
  5. Aticomyces Janellensis Curitibanus - cultura de leveduras selvagens obtidas a partir da fermentação espontânea de um mosto deixado de uma noite para outra em uma janela no ático de minha casa. 
  6. Bariguimyces Cerevisae - cultura de leveduras selvagens obtidas a partir da fermentação espontânea de um mosto deixado com algumas frutas selvagens colhidas no parque Barigui, em Curitiba, conforme descrito aqui.
Aproveito para ressaltar que não tenho formação acadêmica na área de microbiologia, assim peço desculpas se utilizo de forma errada alguns termos. Ressalto também que os nomes científicos dos itens 3 a 6 são obviamente fakes. :-)

Após um pouco mais de um mês de fermentação, clarificação e maturação, seguem abaixo os resultados:


1 - Saccharomyces Cerevisae - US 05

Fermentou três semanas a 18oC e clarificou uma semana a 3oC
FG - 1.012
ABV - 5%
Aparência - Coloração cobre, bem carbonatada, espuma consistente com boa retenção.
Aroma - Caramelo do malte está bem evidente e  percebe-se frutas vermelhas ao fundo. Do lúpulo se nota o cítrico, o floral e um pouco de ervas.
Sabor - No sabor o malte caramelo se sobrepõe, um pouco de cítrico e café, ao final. O amargor do lúpulo e o malte estão bem balanceados. O caramelo persiste no retrogosto de forma bem agradável.
Sensação na Boca - Corpo e carbonatação médios.
Impressão Geral - Uma amber ale agradável e bem equilibrada.





2 - Brettanomyces Bruxellensis Trois - SY 123 Bio4

Fermentou três semana a 25oC e clarificou uma semana a 3oC
FG - 1.007
ABV - 5,5%
Aparência - Carbonatação fraca. Pouca espuma mas bela coloração cobre.
Aroma - Cítrico remetendo a frutas tropicais e melão. Cobertor de cavalo está presente em nível bem agradável. Quase não se notam características do malte e do lúpulo.
Sabor - O sabor acompanha o aroma, com frutas tropicais e cobertor de cavalo. Mas a acidez se torna pungente ao final. Espero que um pouco mais de maturação faça bem para atenuar os sabores.
Sensação na Boca - Fraca carbonatação e corpo. O corpo fraco era esperado, mas a carbonatação me surpreendeu.
Impressão Geral - Uma Brettanomyces voltada muito fortemente para o caráter da levedura e portanto pode-se dizer que um tanto desequilibrada, quase uma "Brett Bomb".

3 - Tamaromyces Ninkasis Originallus


Fermentou quatro semanas a 18 oC, foi a única que formou uma película no fermentador. O que foi curioso pois na fermentação da cerveja do Hino a Ninkasi isto não ocorreu.
FG - 1.015
ABV - 4,5%
Aparência - Não carbonatou direito, espuma muito fraca.
Aroma - Álcool superior bem evidente. Remete a solvente, provavelmente devido a formação de Acetato de Etila pela levedura.
Sabor - Percebe-se solvente novamente. Bem frutada e um pouco ácida, bem adstringente.
Sensação na Boca - Queimação desagradável proveniente do álcool superior e do acetato de etila.
Impressão Geral - Alguma coisa saiu muito errado nessa cerveja que curiosamente utilizou a levedura que trabalhou tão bem na cerveja Hino a Ninkasi. Alguma contaminação deve ter ocorrido durante a propagação que eu fiz.




4 - Quintallomyces Cerevisae 

FG - 1.009
ABV - 5%
Aparência - Carbonatou bem, no entanto a coloração ficou mais para o marrom
Aroma - Aroma cítrico e de caramelo se destacam com um pouco de cobertor de cavalo ao fundo
Sabor - O caramelo se apresenta de uma forma interessante. Nota-se uma adstringência forte, provavelmente fruto de uma oxidação.
Sensação na Boca - Interessantemente seca para uma cerveja que apresenta tanto aroma e sabor de caramelo
Impressão Geral - Teria resultado em uma boa Wild Ale não fosse a oxidação que provavelmente ocorreu durante o engarrafamento. 




5 - Aticomyces Janellensis Curitibanus 

FG - 1.018
ABV - 4%
Aparência - Bela cor cobre com razoável clareza e boa retenção de espuma.
Aroma - Aroma moderado de lúpulo (floral e cítrico) e caramelo do malte, complexo. Sour e um tanto de cobertor de cavalo da levedura estão bem perceptíveis mas em um nível agradável. Um leve acetaldeído.
Sabor - Doçura do malte, amargor do lúpulo e ácido da levedura estão razoavelmente equilibrados no sabor. O caramelo e o cobertor de cavalo se dão bem nessa cerveja. Sensação de frescor ao final, devido a acidez, bem inserida.
Sensação na Boca - Corpo médio/baixo com carbonatação média/alta, sutil adstringência e leve calor alcoólico.
Impressão Geral - No geral uma cerveja funky bem equilibrada, percebe-se a acidez, o malte e o amargor do lúpulo. Talvez o caráter adocicado do malte esteja um pouco mais forte que deveria e existe um pouco de adstringência no final que não chega a prejudicar a experiência. A meu ver, foi a melhor Wild Ale desta experiência. Coloquei ela no concurso paranaense de cerveja e obteve uma respeitável pontuação de 31,5. Inseri alguns comentários dos juízes na avaliação acima. Ao Final um dos juízes me deixou uma lisonjeira mensagem na minha ficha e transcrevo aqui:
*PS do juiz: parabéns pela iniciativa! Pela ideia e pelo trabalho. A cena cervejeira agradece.  Pode não ter se destacado mas o caminho é esse.

6 - Bariguimyces Cerevisae

Fermentou quatro semanas a 18 oC. 
FG - 1.008
ABV - 5,4%

Aparência - Ficou com coloração menos cobre que as outras, puxando mais pro dourado. Achei curioso e fui pesquisar o assunto e descobri que de fato a mudança de cor que ocorre durante a fermentação varia com a levedura utilizada. Carbonatação e espumas bem fracas.
Aroma - Percebe-se um pouco de álcool superiores. Bem frutada remetendo a damasco e frutas cítricas. Não se nota o caramelo do malte e o cítrico do lúpulo se confunde com a acidez da fermentação. 
Sabor - Acidez agradável com um frutado predominando. Não se percebe o malte nem o lúpulo.
Sensação na Boca - Bem seca, com carbonatação bem fraca.
Impressão Geral - Uma cerveja sour agradável, com algum off-flavor de álcool superior e pouco equilibrada pois o caráter ácido da levedura predomina.


Conclusão

Aprecio bastante fazer experiências cervejeiras como essa. Aprende-se muito e geralmente é muito gratificante. Mas é realmente MUITO trabalhoso. Tanto pelo final da brasagem, na qual precisa-se distribuir a cerveja em vários fermentadores, quanto no acompanhamento durante a fermentação, mas nada se compara mesmo com o trabalho que tive ao engarrafar... aquilo foi o inferno.

Ao final, o resultado foi muito satisfatório, das quatro cervejas feitas com leveduras "caçadas" pelo menos duas eu posso dizer que ficaram muito boas. Considero que 50% de sucesso utilizando essa técnica uma estatística bem satisfatória levando em conta que alguns sites falam de uma chance em dez.

Interessante perceber que a FG entre as amostras variou entre 1.007 a 1.018. A amostra que resultou em FG 1.007 foi a com Brettanomyces o que ficou de acordo com o esperado. A amostra 5 (Aticomyces) destoou um pouco das demais ao atenuar apenas até 1.018, apesar disso resultou numa cerveja muito agradável.

                                                                                                                                                  



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